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Cidade Heróica: Jaguarão não é só free shops

Jaguarão não é só free shops
Jaguarão

Tudo bem, tudo bem - eu assumo minha suspeição. 

Como jaguarense de carteirinha, nascida, criada e domiciliada, assumo que sou suspeita para falar.

Mas não posso deixar de dizer: Jaguarão não é só free shops, ou melhor dizendo - uma visita à Cidade Heróica não pode se resumir aos free shops do Rio Branco, cidade vizinha, do lado uruguaio.

Não vou negar que é muito bom fazer compras nos free shops, seria hipocrisia.

O que eu não consigo entender, contudo, é esse pessoal que vem, cruza a cidade pela Rua Uruguai, atravessa a ponte e vai direto ao que interessa. 

Não lembram de dar uma chegadinha no Museu Carlos Barbosa, onde viveu o então "Presidente do Estado", uma volta no Largo das Bandeiras, onde fica a Praça Matriz, quem sabe uma passadinha na beira do Rio Jaguarão, para ter a vista mais bonita da ponte que normalmente só vêem de cima...

Eu mesma, sempre que ia às compritchas no Chuí, quando ainda não havia free shops em Jaguarão, sempre dava uma voltinha em Santa Vitória, ia até a Barra do Chuí, passava pelo Forte de San Miguel, pela Fortaleza de Santa Tereza, esticava até Punta del Diablo...sei lá - não entendo esse pessoal que vem até aqui e vai embora sem ter a curiosidade de ver nada!!!

Aldyr Garcia Schlee, jaguarense ilustre, que ficou famoso ao vencer um concurso nacional de desenho para escolha da camisa da Seleção Brasileira de Futebol, escreveu a respeito, numa crônica chamada Ir a Jaguarão e descobrir o resto do mundo, e aqui eu transcrevo alguns trechos:

Aldyr Garcia Schlee
Aldyr Garcia Schlee recentemente ganhou uma homenagem à sua altura num mural em Jaguarão

Ir a Jaguarão não é fácil; mas compensa. (...)

Ir a Jaguarão e Río Branco é ir ao exterior sem sair do interior, é ir ao estrangeiro sem ser forasteiro, é sentir-se cosmopolita dentro de casa. De certa maneira, é descobrir o resto do mundo no próprio espelho, ante a conformidade das margens opostas e a repartição dos arcos da Ponte.

Sobre o cimento da belíssima Ponte Internacional Mauá, bem no meio do rio, havia um risco vermelho, separando Brasil e Uruguai: botava-se um pé aqui, outro lá, além do risco - e estava-se ao mesmo tempo nos dois países. Hoje, o risco foi apagado e substituído por uma placa; mas a cada ida e a cada volta, a cada troca de lado, a cada mágica travessia, opõem-se e complementam-se sobre a ponte o perto e o distante, o nosso e o deles, assumindo-se ante cada um de nós, em nós mesmos, o outro.

Ao entardecer, o sol aparecido no Brasil começa a desaparecer no Uruguai: do lado de cá, o leitor descerá até o cais de Jaguarão e poderá se deslumbrar com o espetáculo de cores e luzes de um inigualável pôr-do-sol varado sobre o rio, entre oito escurecentes e majestosos arcos da Ponte; do lado de lá, o leitor estará num banco da calle costaneira de Río Branco, e verá a Ponte toda dourando-se de sol e incendiando-se esplendorosa e repetida no espelho das águas.

O leitor terá chegado de manhã. Terá visto logo, nos arrabaldes, modestas casas com fachadas altas e telhados inclinados para trás, numa meia-água muito comum dos dois lados do rio - a que chamam “cachorro sentado”. Terá chegado até à Praça, ao largo da Matriz, quem sabe ao Hotel; e terá se admirado da beleza dos casarões de altas portas e tantas e tantas sacadas - que constituem ali o mais admirável e bem conservado conjunto de arquitetura eclética do Rio Grande do Sul.

O leitor contará dez sacadas na fachada do Clube Harmonia; doze, na do Jaguarense. Mas precisará encontrar um guia, quem sabe no Instituto Histórico e Geográfico, quem sabe na Casa de Cultura, para poder visitar a cidade, chegar ao museu Carlos Barbosa, à Igreja da Mi-nervina (e saber coisas, que todos sabemos, os jaguarenses; e que contamos gostosamente, mas não escrevemos). O leitor conhecerá o Teatro, as ruínas da Enfermaria, portas e portas de descomunal escultura; e admirará quantas fachadas se lhe apresentarem (o medo que se tem, em Jaguarão, é que fiquemos sempre num turismo de fachada).

Depois o leitor irá a Río Branco. Atravessará a Ponte obrigatoriamente a pé, para melhor apreciar o rio, para melhor sentir o sortilégio da ponte, e para logo - a passo, no mais - deparar-se com o outro lado e, logo logo, ver tudo de lá para cá.

Em Río Branco o leitor chegará por uma rampa da Ponte e irá a uma quesería e comprará queijos das mais variadas procedências e qualidades; comprará morrones dulces em conserva e os inigualáveis dulces de leche Conaprole - com chuno ou sin chuno. Mas deverá dar um jeito de conseguir carona ou tomar um velho ônibus para ir até a La Cuchilla, que é a parte mais alta da cidade, lá na continuação da Ponte. Em La Cuchilla, não se pode deixar de conhecer a Estação Ferroviária, dar uma volta na Praça, comprar jornais no Kiosko e provar masitas, uma torta pastaflora e uma pascualina, na Confiteria Nueva Iberia; e o leitor saberá chegar à calle Virrey Arredondo para desfrutar dessas delícias.

Se o dia estiver bonito, valerá a pena dar um jeito de ir ao balneário Lago Merín, a 20 quilômetros de Rio Branco: uma praia uruguaia banhada pela Lagoa Mirim - patrimônio da humanidade - com Cassino e a possibilidade de se comer, dependendo da época, um pintado à jaguarense ou uma traíra recém pescada.

À noite, haverá tempo para voltar a La Cuchilla e dirigir-se ao “Tacuarí” (algumas quadras depois da Ponte, à esquerda), pedindo ao Acuña, dono e assador, nada mais do que um petit-entrecot - que sobressairá do prato e, a cada bocado, justificará o fascínio daquele modesto restaurante de tiras de plástico na porta de entrada, havendo de impor definitivas certezas sobre a excepcional qualidade da carne e da parrilla uruguaias. O acompanhamento se fará com pão graseoso, cerveja Patricia e, dependendo da sorte, com as coplas de algum guitarreiro desgarrado.

De regresso a Jaguarão, é obrigatório voltar-se pelo trecho da Ponte que liga as duas partes de Río Branco, para ter o privilégio de flagrar a cidade brasileira descobrindo-se na sua própria iluminação, do outro lado do rio - e crescendo contra o céu escuro.

Depois, basta dormir e sonhar; na certeza de que ter ido a Jaguarão (e Río Branco) é não ter passado em vão pela vida.

Agora, se o leitor sabe que em Río Branco há um duty-free shop com meia dúzia de excelentes lojas com ar condicionado, vendendo a dólar produtos de todo o mundo; e deseja ir até lá só para fazer compras, essa é uma boa pedida. Mas, por favor, não entre em Jaguarão: siga até à última rua, ao fim da estrada, dobre à esquerda, em direção à Ponte sem olhar para os lados; atravesse a Ponte sem se importar com o rio; desça à direita, pela rampa, sem pensar em nada; e vá de loja em loja comprar o que quiser e puder.


vista aérea do casario do centro da cidade
  
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Claudia Rodrigues Pegoraro

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1 comentários:

  1. Sempre me pareceu que a ponte tem 9 arcos e não 8, como descrito pelo Prof. Schlee.

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